Crítico do Acordo Ortográfico (AO), o director do programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa não reconhece ao Estado o direito de legislar sobre a língua. Na ideia de lusofonia que hoje serve para justificar o AO, Miguel Tamen vê a recuperação da mesma utopia que serviu à direita para defender o imperialismo colonial português. Pronta a passar atestados de incompetência aos cidadãos, “a esquerda portuguesa é, afinal, a direita portuguesa por outros meios”, lamenta.
Qual a sua posição no que diz respeito ao AO?
Considero o acordo uma péssima ideia e uma ideia inútil, mas por razões diferentes daquelas que tenho visto apresentar. Há pessoas que dizem que o acordo é mau porque foi tecnicamente mal feito; há outros que consideram que o acordo é mau porque é inválido e porque, juridicamente, não está em vigor; há ainda as pessoas que criticam o acordo como erro político, uma cedência a países terceiros; aqueles que são contra por entenderem que o acordo é ineficaz, por não existir um modo exequível ou prático de o implementar; e, por fim, os que o rejeitam por acharem que coisas como a língua não devem ser objecto de legislação e acordos. Percebo todas estas posições e concordo essencialmente com a última, mas a minha objecção principal não coincide com nenhuma destas.
Qual é então essa sua principal objecção?
Eu acho que o acordo é mau porque a ideia de lusofonia é má. Na minha opinião, tudo o que invoque a noção de lusofonia me parece deplorável.
Porque considera má a noção de lusofonia?
Por duas ordens de razões. Começando pela mais abstracta, porque pressupõe que, como um dado adquirido, países ou pessoas possam estar unidos por uma língua. E pressupõe que uma língua faz parte de um património – e de um património que precisa de ser defendido. Não acho que as pessoas precisem de ser defendidas por uma língua, não acho que a língua seja património e, por isso, não acho que exista alguma necessidade especial de defender o património da língua. Esta é a primeira ordem de razões. Mas há outra, que é mais desagradável, que me faz entender a lusofonia como uma noção errada: a noção de lusofonia corresponde em Portugal, historicamente, a uma espécie de colonialismo de esquerda, à ideia de que, desaparecido o império colonial português, seria possível manter um seu substituto espiritual.
Uma espécie de irmandade de armas?
Sim, uma espécie de irmandade. É como que a versão de esquerda de uma causa que nos anos 40 era defendida com a ajuda de palavras como “fé”, “império” ou “religião”. Hoje já não se fala de fé, nem de império ou religião, mas fala-se de lusofonia. Com motivações muito parecidas. Felizmente, os meios para pôr em prática esta agenda são escassos. E mais: muitas das pessoas que são contra o acordo são a favor da noção de lusofonia. Acham é que é possível defender a língua doutra maneira. Simpatizando embora com a hostilidade destas pessoas face ao AO, entendo ser um mal-entendido deplorável invocarem a lusofonia, a cultura comum, etc.
Posto isso, na sua opinião, fica alguma coisa da ideia de lusofonia?
A ideia de lusofonia é geralmente usada em Portugal como uma espécie de cartaz daquilo a que se poderia chamar o excepcionalismo português, a ideia de que os portugueses são diferentes de todos os outros. A ideia de excepcionalismo português é usada para encontrar justificações políticas para toda uma série de acções.
Quais, por exemplo?
Se um angolano for cleptocrata, só porque fala português é menos cleptocrata. E se um timorense for mártir, só porque fala português é mais mártir. Ora não é nem menos cleptocrata nem mais mártir. Falar português não acrescenta nem tira nada. Recorremos a esta noção para pensarmos que somos especiais. A ideia de imaginar que um país é especial por causa da língua é tão nefasta como imaginar que se é especial por motivo da raça ou da cor da pele, ou dos sapatos que calçamos, ou do penteado.
A língua não deve ser objecto de nenhum cuidado particular, devemos deixar que siga o seu livre curso?
Claro. E é aí que entram os argumentos razoáveis sobre o modo como nenhum acordo ortográfico vai mudar a maneira de as pessoas falarem. Não é só legislar sobre a língua que é tonto, é imaginar que leis sobre a língua possam ter efeitos. Legislar sobre a língua é o mesmo que legislar sobre a virtude. Imagine um decreto-lei que estipule que, a partir de agora, os pecados são proibidos. Como é que isso se põe em prática?
Os adeptos do AO dizem que se trata de assegurar a compreensão e a leitura.
Os problemas de compreensão não ocorrem por causa da ortografia e não são resolvidos graças à ortografia. Os problemas de compreensão ocorrem, por exemplo, no caso daquilo a que se chama eufemisticamente “português do Brasil”, por causa da sintaxe, ocorrem por causa da pronúncia, ocorrem por causa de um sistema de formas de tratamento completamente diferente, ocorrem por um vocabulário que nalguns casos é completamente diferente e, portanto, nenhuma medida de ortografia e nenhuma medida de leis sobre ortografia vai resolver problema nenhum.
A favor do AO diz-se ainda que o número de palavras cuja grafia é alterada é relativamente pequeno.
É verdade, mas é igualmente verdade que as palavras cuja grafia sofre alteração tendem a aparecer concentradas em determinados contextos. De repente, vemos proliferar num ecrã de televisão palavras como “espetadores” e “atuais”. Ocorre-me a descrição de um fragmento muito conhecido de Fernando Pessoa no “Livro do Desassossego” que nunca é citado no seu conjunto. A primeira parte é “Minha pátria é a língua portuguesa” e o resto deste fragmento diz “Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse”. Esta é uma dimensão pessoal e visceral; os meus argumentos contra o acordo não são de modo algum de ordem tão pessoal ou visceral.
Neste momento, como prevê que as coisas se desenrolem?
No mundo académico, as transformações sentem-se de uma forma diferida, acolchoada, não são ressentidas automaticamente. Depois da reforma de 1911, as pessoas continuaram a escrever durante muito tempo como se escrevia antes de 1911. E muitas escreveram dessa maneira até ao fim da vida. Não penso que no mundo académico isso tenha muitos efeitos. Parece-me altamente insensato que nas universidades ou academias se altere a ortografia por via administrativa. São desejos de um Estado hipertrofiado.
Mas a universidade vai ter de adoptar o AO nos documentos oficiais.
Não é para mim claro que isso tenha de acontecer, embora a discussão a ter seja uma discussão jurídica. Não é claro que a autonomia da universidade e a lei da autonomia das universidades não dêem espaço às universidades precisamente para decidirem se devem adoptar ou não esse tipo de medidas.
A pronúncia como argumento é, na sua opinião, inconsistente?
Há aí uma contradição: muitos dos defensores do AO dizem que é um bom instrumento para aproximar a escrita da pronúncia. E ao mesmo tempo querem que a maneira de escrever seja comum a todos os países que falam português. Em partes diferentes de Portugal, de Angola ou do Brasil são usadas pronúncias completamente diferentes. Se acham que a ortografia deve respeitar a pronúncia, isso daria lugar, não a uma ortografia unificada, mas a dezenas de ortografias. Se, pelo contrário, acham que a ortografia não deve respeitar a pronúncia, então não tem sentido um acordo ortográfico.
Querendo aproximar da pronúncia para simplificar a escrita, é lógico que se queira legislar sobre esta questão?
É completamente incongruente e irracional. É mais uma contradição. Há coisas com as quais não concordamos, mas às quais conseguimos reconhecer vantagens. No caso do AO, não consigo pensar numa única vantagem. É um desastre completo.
Quais são os argumentos que o fazem dizer que é um desastre?
É um desastre linguístico, porque foi feito de uma forma inepta. É um desastre jurídico, porque ninguém tem a certeza se está em vigor. É um desastre político, porque cede a interesses espúrios. É um desastre intelectual, porque não é, muito simplesmente, eficaz. E é um desastre do ponto de vista geral, porque consiste em legislar sobre uma coisa que não tolera
legislação.
Os defensores do acordo argumentam que, de qualquer modo, estamos a obedecer a um acordo anterior.
Em rigor, não é verdade. Estamos a obedecer a uma reforma que foi feita unilateralmente em Portugal em 1911 e houve várias tentativas abortadas de acordo desde 1911, uma reforma que demorou muito tempo a ser implementada e que, em última análise, se transformou numa espécie de segunda natureza. Alterar a ortografia em 1911 era igualmente irrazoável porque, embora a maneira de escrever e as línguas se alterem, não devem mudar por imposições legislativas. Também havia erros de ortografia antes de 1911. Mas mais grave que escrever mal ou bem palavras, é dizer disparates ou pensar mal.
Está a dizer-me que se trata de um vício de tutela do Estado, que não reconhece capacidade e responsabilidade aos cidadãos?
Da perspectiva liberal, é certo que entendo, como os liberais, que o Estado não deve legislar sobre a língua. Mas a razão porque assim entendo não é porque ache que seja uma imoralidade intrínseca fazê--lo, mas porque não são necessárias leis onde existem costumes satisfatórios. É uma defesa daquilo que é familiar. E, deste ponto de vista, considerações sobre o interesse de uma espécie de lusofonia etérea parecem-me a pior de todas as alegações e o pior de todos os argumentos.
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